Há 4 anos, sentado em minha sala diante da televisão e assistindo ao jogo final da última copa, Espanha x Holanda, pensava: "Uau, daqui a quatro anos isso tudo estará acontecendo em meu país, em minha cidade. E nada está diferente, nada sinaliza que estará diferente. Como se dará isso? O esporte que eu mais amo, em sua expressão máxima, a apenas 2 km da minha casa? O que estarei fazendo? Terei a chance de estar lá? Minha cidade se elevará ao patamar de 'primeiro mundo', conforme vende a mídia?"
Passados quatro anos, acho impressionante o salto de modernização conservadora dado nesse período. Por exemplo, o aparelho de usurpação do fundo público modernizou-se. A propaganda ideológica nacionalista-ufanista-alienante modernizou-se. O aparelho repressor das forças de segurança modernizaram-se. As formas de endividamentos público e privados diversificaram-se e modernizaram-se. O que se conservou:
Minha situação financeira.
Minhas condições de trabalho.
A situação do meu time.
Meu grau de indignação com as injustiças.
Meu gosto por cerveja e futebol.
Todavia, também evoluiu o grau de indignação e discernimento da população diante de tamanho assombro com os gastos públicos. Entretanto, é importante destacar inicialmente que os gastos com a Copa giram em torno de 25 bilhões, mas esses gastos não fazem a menor
cosquinha nos gastos com saúde, educação e segurança, dois motivos de indignação com serviços públicos apontados nas jornadas de junho/2013 e que ganham grande repercussão até hoje. E por mais que sejam volumosos e em alguns casos assombrosos, o que mais me impressiona é a enorme celeridade com que se arrebanharam as forças políticas, as dotações orçamentárias, a aprovação de legislações voltadas para o evento. Isso estabelece indubitavelmente que a prioridade é o desenvolvimento econômico, geração de receitas e divisas tanto anunciada pelos promotores do evento, mesmo que isso aumente a desigualdade social, a concentração de renda, o fisiologismo e favoritismo político aos grupos que nunca, repito, NUNCA saíram do poder neste país, mesmo sob um governo de esquerda. A Copa 2014 traz capital político para todas as correntes e ideologias partidárias, mais ainda em ano eleitoral e ainda mais para os partidos que estão aparelhados com o poder (seja nas esferas municipal, estadual ou federal). Mas aqueles que detêm o poder econômico e a direção da sociedade civil aprenderam definitivamente que o poder econômico é o que fala mais alto na política. Ou seja, eles podem
brigar, esbravejar, mas estão de barriguinha cheia.
O dito legado da copa, de fato, não se aplica aos que utilizam os serviços públicos, mas sim àqueles que estão inseridos no mercado de consumo. As novas estradas, novos aeroportos, estádios, e especialmente segurança pública são praqueles que podem pagar por eles, podem consumi-la. Isso tudo que foi estipulado como "Padrão FIFA" corresponde a um padrão de civilização burguesa europeia, uma região do capitalismo que já têm controlada muitas de suas contradições sociais desde o século passado, já tem
expertise em apaziguar crises econômicas e sociais desde a Primeira Guerra Mundial. Principalmente econômica, desenvolvendo novas e modernas formas de exploração, manutenção das taxas de lucros e bem-estar social (dependendo da crise econômica, nem tanto bem-estar assim).
Agora, aqui no nosso Brasil isso não cola. Vivemos desde o nosso berço nada esplêndido espoliados por interesses internacionais aliados a oportunismo de setores da burguesia nacional subservientes e cúmplices a esses interesses. Ainda que tenhamos vivido nos últimos anos avanços inegáveis na área do desenvolvimento social em comparação com séculos de atraso, também são inegáveis o acirramento da desigualdade social e concentração de renda. São dados matemáticos: aumentou a renda do pobre, aumentou ainda mais a renda do rico. E, retomando o assunto gastos com a copa, que anteriormente chamei irrisórios diante outros setores do investimento público, há de se destacar o gasto com a dívida pública: no Orçamento Geral da União (OGU) executado em 2013 foram gastos
718 BILHÕES de reais com o pagamento de juros e amortização da dívida pública, segundo o
Portal da Auditoria Cidadã.
OGU 2013. Total: R$ 1,783 trilhão.
Fonte: Auditoria Cidadã da Dívida
Então, camaradas da FIFA, vocês que já nos impõe onde devemos gastar nosso dinheiro, utilizam sua marca para lucrar à custa do nosso trabalho e ainda querem ditar um modelo de civilização? O forte "legado" para segurança pública não me parece ter sido suficiente, ao ponto de ter visto nas ruas da cidade as forças militares ferozmente armadas. Certamente é pra controlar os "terroristas"
à lá ditadura militar... (tradução: manifestantes).
É dolorido, portanto, ter que reconhecer o sucesso do evento. Sim, o sucesso, pois o futebol cativa as emoções mais intensas as quais seus admiradores jamais se desvencilhariam em qualquer copa do mundo, ainda mais uma que ocorre no seu quintal. No fundo é triste sorrir de emoção e, ao mesmo tempo, chorar pela derrota de minha cidadania, de minha luta, de minha história como cidadão brasileiro. É contraditório que eu aumente meu endividamento pessoal para enriquecer uma entidade internacional motivado por uma oportunidade cultural ímpar na minha vida e especialmente na dos meus filhos enquanto, novamente chorando, tento sorrir e gritar Brasil. É triste ser usurpado e, ao querer mostrar minha revolta na rua, deparar com jovens fardados portando fuzis para me intimidar.
É duro assistir à Copa na TV sem a voz de Luciano do Valle. Parênteses: ele, além de ser o dono do único autógrafo que já peguei em toda minha vida, é um dos responsáveis por eu ter desenvolvido o gosto por esportes, por todos os esportes, e por isso, certamente, influenciado em minha escolha pelo curso de Educação Física, hoje meu trabalho, e o sustento de minha família. Sem ele, o esporte espetáculo perde o brilho... Mais uma vez a
cretinisse e a falta de graça hegemonizam.
Resta-me a impressão que durante todo esse tempo apenas estive recolhido ao posto de "consumidor de segunda classe", aquele que tem acesso somente à exposição superficial do que aparece na vitrine da TV. Agora com arenas modernas, confortáveis, seguras e elitizadas eu e parte do povo brasileiro podemos nos considerar "consumidores de primeira classe" do esporte. Essa é a lógica do jogo comandado pela FIFA, pelos detentores do poder econômico e por alguns governantes que elegi por seus propósitos "democráticos e populares". Isso também irá doer na hora que a lágrima rolar quando ouvir o hino nacional no estádio.
Enfim... 4 anos após aquele momento de reflexão, residindo 20 km mais distante do estádio, com muitas reflexões na cabeça devido as muitas voltas e oportunidades que a vida me deu para produzi-las vejo que pouca coisa mudou. As respostas àquelas perguntas do sofá podem ser expressas, talvez, pelo mesmo sentimento de incertezas e também pelo movimento que sou impelido a tomar dia após dia de propiciar aos meus filhos o principal sentido de legado - a missão de deixar algo concreto, material, que tenha utilidade no futuro. E o "legado" principal que extraio deste momento histórico é que existem coisas no plano da materialidade que jamais são
usurpáveis: nosso patrimônio cultural; nossos sentimentos; nossa indignação e a luta decorrente dela; nossa capacidade para o trabalho; a força revolucionária que eclode diante de todos esses fatores; nossos sonhos.
Ao anúncio do primeiro apito desta copa, a lágrima que fatalmente emanará de meus olhos, torço, estará afeiçoada deste verdadeiro legado de esperança e sonhos revolucionários.