Neste segundo semestre tenho, junto com Lili, procurado exaustivamente
uma escola nova para matricular nossos filhos no próximo ano. As razões da
mudança de escola são simples: o Davi ingressará o ensino fundamental,
alcançando a idade limite para a escola atual; o João Pedro o acompanharia por
uma questão de logística familiar indo, preferencialmente, pra mesma escola do
irmão. Entretanto, por detrás disso há motivos muito mais contundentes para a
troca: não aguentamos mais ser assaltados pelas instituições
particulares de ensino, ser tapeados com propostas e metodologias falaciosas e
também sermos ludibriosamente coniventes com a precarização de trabalhadores em
detrimento ao lucro exorbitante das instituições. Então vínhamos
experimentando, assim como outros pais da escola, a angústia de encontrar uma
instituição que atendesse nossos anseios de uma formação humanizadora e
consistente no sentido ético, filosófico, corporal e científico, e ainda
possibilitando-nos o exercício de nosso trabalho de 40h semanais. A
necessidade por um atendimento em instituição que ofereça educação em tempo
integral é um lugar-comum na vida das famílias onde ambos os pais necessitam
trabalhar.
Nessa busca, que mais seria uma contenda, diversas escolas têm sido
visitadas por mim e também por outros pais/companheiros. E uma das
minhas maiores dificuldades para efetivar a matrícula em instituições de
educação privada (somadas à falta de grana, obviamente) é ter que engolir a
receita descrita no parágrafo anterior. Mas não somente isso: é ter que me
render, sorrindo, à proposta pedagógica que norteia e embasa a educação oficial
brasileira, o construtivismo. Explico-me melhor.
A psicologia genética desenvolvida pelo biólogo suíço Jean Piaget, a
qual embasa radicalmente a concepção pedagógica construtivista, tem também
servido como base para as políticas educacionais brasileiras desde o início do
século XX, com o surgimento da Escola Nova em superação à “escola tradicional”. Sua influência perdura até os documentos oficiais recentes como os Parâmetros
Curriculares Nacionais (os PCN’s), desenvolvido pelo governo FHC, e em
vigência até os dias atuais. Essa teoria pedagógica desloca o conteúdo e o professor
do cerne do processo ensino-aprendizagem (o que é postulado como “educação
tradicional”) para o estudante e sua capacidade individual de aprender, de
acordo com a etapa maturacional de seu desenvolvimento. Segundo o próprio
Piaget (1994):
Em cada um desse
níveis, o espírito desempenha a mesma função, isto é, incorporar o universo a
si próprio; a estrutura de assimilação, no entanto, vai variar desde as formas
de incorporação sucessivas da percepção e do movimento, até as operações
superiores. Ora, assimilando assim os objetos, a ação e o pensamento são compelidos
a se acomodarem a esses, isto é, a se reajustarem por variação de cada variação
exterior pode-se chamar “adaptação” ao equilíbrio destas assimilações e
acomodações. Esta é a forma geral de equilíbrio psíquico. O desenvolvimento
mental aparecerá, então, em sua organização progressiva como uma adaptação
sempre mais precisa à realidade. (PIAGET, 1994, pág. 17 apud DUARTE, 2000)
O importante na concepção Construtivista não é aprender ao máximo, mas
potencializar a aprendizagem e continuar aprendendo após a escola. Esse
raciocínio, efetivamente, acaba por transferir o cerne do processo
ensino-aprendizagem para o aluno, de forma que todo o conhecimento deve ser
facilitado e mediado para que seja assimilado pelo educando de acordo com sua
etapa de desenvolvimento bio-psicológico, fazendo de seu desenvolvimento
pessoal a engrenagem principal deste maquinário. Assim, a aprendizagem se dá em
etapas maturacionais, a qual deve ser facilitada e estimulada.
Portanto, essa concepção defende que a aprendizagem é nivelada em etapas
de desenvolvimento, dando ênfase a aspectos maturacionais e biológicos,
fechando a teia da aprendizagem e da construção do conhecimento nos lemas
aprender a conhecer, aprender a aprender, aprender a fazer, postulados
basilares da concepção pedagógica construtivista. Credito a Newton Duarte (2000)
a melhor análise sobre esta falácia:
Nossa avaliação é a
de que o núcleo definidor do lema “aprender a aprender” reside na
desvalorização da transmissão do saber objetivo, na diluição do papel da escola
em transmitir esse saber, na descaracterização do papel do professor como alguém
que detém um saber a ser transmitido aos seus alunos, na própria negação do ato
de ensinar. (DUARTE, 1998, apud DUARTE, 2000, pág. 8).
E continua:
O lema “aprender a
aprender” é a forma alienada e esvaziada pela qual é captada, no interior do
universo ideológico capitalista, a necessidade do caráter estático da educação
escolar tradicional, com seu verbalismo, seu autoritarismo e seu
intelectualismo. A necessidade de superação das forma unilaterais de educação é
real, objetivamente criada pelo processo social, mas é preciso distinguir entre
necessidade real e as forma alienadas de proposição de soluções para o
problema. O lema “aprender a aprender”, ao contrário de ser um caminho para
superação do problema, isto é, um caminho para formação plena dos indivíduos, é
um instrumento ideológico da classe dominante para esvaziar a educação escolar
destinada à maioria da população enquanto, por outro lado, são buscadas formas
de aprimoramento da educação das elites (DUARTE, 2000, pág. 8)
A educação fundada na proposta construtivista se desdobra em alienação a partir do momento onde o indivíduo
interage com todo o conhecimento histórico produzido pela humanidade (conduzido até ele pela escola) e com os demais seres segundo a lógica da
assimilação e acomodação das informações, em detrimento da apropriação, síntese
e socialização do mesmo, dentro do contexto sócio-histórico de cada indivíduo. Isto
é, transformar a natureza, o ambiente e a própria sociedade na perspectiva marxista:
tese-antítese-síntese; trabalho - humanização. E no universo infantil, entendo,
isso implica em oferecer estímulos, informações, cultura e conteúdos contextualizados
no universo do educando oferecendo-lhes oportunidade de intervenção e síntese
dos mesmos, desprovidos de arestas e bitolas pré-determinadas por etapas de
desenvolvimento biológico. Facci (2011) acredita que “deve-se considerar o enfoque
histórico dos ritmos de desenvolvimento e o surgimento de certos períodos de
acordo com o avanço histórico da humanidade” (FACCI, in MARSIGLIA, 2011, pág.
127).
Acredito que a fragilidade desta compreensão da aprendizagem e desenvolvimento humano
encontra-se na naturalização e universalização do ser humano biológico, a-histórico,
dessocializado e idealizado, não materializado. Isso pode sugerir que o sucesso ou o fracasso do
educando é de sua própria responsabilidade, tendo em vista que, para os
construtivistas, o desenvolvimento humano é universal, do Japão à Uganda, da
Suíça ao Paraguai, em todos os tempos e lugares históricos, mas ignorando que Piaget
“desvelou” os segredos do desenvolvimento infantil a partir de seus estudos no
contexto do positivismo europeu. Também sugere que a dinâmica social da
humanidade ocorre de forma natural, ou seja, a divisão da sociedade em classes
privilegiadas e desprivilegiadas é normal e fruto da evolução do ser humano. Não
é à toa que essa lógica representa o fundamento dos programas educacionais, não
só no Brasil, mas também sugeridos pela UNESCO (Duarte, 2000). Entretanto, não
fazem questão de revelar qual a direção deste projeto de educação, a qual
projeto histórico de homem e de sociedade ele serve e que, de fato, ele apenas
enquadrou o conhecimento científico e tecnológico a ser transmitido pela escola
na perspectiva da qualidade total a partir de métodos didáticos mais suaves e
interessantes. Não sou eu quem afirma isso, outros educadores e pesquisadores
de elevadíssimo nível me auxiliaram nessa visualização, como os até aqui
citados, acrescidos de Saviani e tantos outros da minha área, a educação
física. Cito Roberto Liáo Jr, amigo, orientador de minha especialização e
exemplo pessoal de cultura e engajamento político.
Trazendo para o contexto material, cotidiano, prático, percebi que as
grandes lições disponíveis para meus amados rebentos e seus amiguinhos, segundo
este modelo de transmissão da cultura, conteúdo e “desenvolvimento” educacional
sustentadas pelo Construtivismo são a naturalização:
· da postura de
pajem dos educadores em relação a eles (e também aos pais), reflexo da
insegurança e instabilidade no emprego (precarização do trabalho);
· do distanciamento
dos professores e demais trabalhadores do cotidiano escolar em relação a eles e
sua família, reflexo da precarização e hierarquização das condições de trabalho;
· do aprisionamento
dos saberes e da cultura infantil à cultura do consumismo e do trabalho
hierarquizado, reflexo da formação inicial e continuada precárias e com viés
construtivista dos educadores;
· da ingerência de
fatores extra-classe no trabalho pedagógico, como reflexo da hierarquização e
da lógica de gestão empresarial nas instituições particulares de ensino;
· da
fragmentação e descontinuidade do trabalho pedagógico, como decorrência da
terceirização de atividades de ensino como oficinas esportivas, de línguas, de
artes, etc.
· da
sobrepujança de profissionais de áreas afetas à educação como
psicólogos e administradores na gestão de assuntos pedagógicos;
· da
naturalização da sociedade de classes, como decorrência da relação estabelecida
no contexto: consumidor (do serviço educacional) – prestador (do serviço
educacional).
Isso para meus filhos (e certamente para outras crianças também), implica
em dificuldade de situarem-se como filhos da classe trabalhadora, a qual
esforça-se de maneira sobre-humana para que aquele espaço e oportunidade sejam
lhes sejam garantidos. Assevero, há aqueles que efetivamente são filhos da
classe trabalhadora. Mas, em instituições de ensino privadas, hão também aqueles
que queiram distanciar-se de uma possível educação popular, querendo garantir
uma “educação privilegiada”, a respeito do método, da estrutura e ao
contexto social.
A despeito dessa conjetura burguesa decidimos, finalmente, efetuar a matrícula de nossos filhos no escola pública, cuja proposta pedagógica encontra-se à sombra de uma pedagogia histórica e crítica (perífrase minha...), vislumbrando uma maior possibilidade de diversidade humana sem o viés capitalista, um maior controle social na intervenção da escola (consequentemente da sociedade ) em nossos filhos, e, principalmente, no real posicionamento dessas duas crianças em seu contexto socioeconômico, despertando, quem sabe, uma consciência revolucionária em relação à história de sua família, de sua sociedade, e de suas possibilidades profissionais e humanitárias. Isso é o meu desejo, parafraseando Gadotti (2003), a todas crianças da humanidade. Pois amo meus filhos a como todas as crianças da humanidade.
Referências que auxiliaram a construção deste post:
FACCI, Marilda Gonçalves Dias. A crítica às pedagogias do "aprender a aprender": a naturalização do desenvolvimento humano e a influência do construtivismo na educação in Pedagogia histórico-crítica: 30 anos. Ana Carolina Galvão Marsiglia (org.) - Campinas, SP: Autores Associados, 2011.
DUARTE, Newton. Vigotski e o "aprender a aprender": crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 2ª ed., Campinas, Autores Associados, 2001.
CENEC. http://www.cnec.br/site2/php/educ_basica.php. Acesso na mesma data da postagem.
GADOTTI, Mocir. A dialética do amor paterno. 6ª ed. São Paulo, Cortez, 2003.
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